Odysseus and Calypso Arnold Böcklin • Painting

Humanidade — A tentação de Ulisses

Marcos de Benedicto (Bene)

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Voltando para casa depois do fim do combate, Ulisses naufragou na ilha da deusa Calipso. Lá, os dois se apaixonaram. Tropical e luxuriante, a ilha era um lugar remoto, um verdadeiro paraíso onde ninguém mais vivia.

Calipso sabia que Ulisses, por ser mortal, algum dia iria morrer e que ela ficaria sozinha novamente. Por isso, a bela deusa lhe deu a chance de conquistar a vida eterna, oferecendo-lhe néctar e ambrosia, os alimentos dos deuses. Se aceitasse a oferenda, Ulisses estaria livre da morte e viveria para sempre, desfrutando os prazeres dos sentidos ao lado dela.

Semanas depois de sua proposta, no entanto, ela o encontrou chorando na praia, o olhar perdido no horizonte, tentando avistar o lar de onde partira fazia 20 anos.

Não era exatamente por sua casa que chorava, nem por saudade da mulher, nem pelo filho que deixaria ainda criança e que se tornara adulto durante os longos anos de guerra e no mar. Chorava por Ulisses passar a saber que precisavam dele para corrigir os erros que tinham afetado seu lar e seu reino nos anos em que estiveram fora. Somente se voltasse poderia se tornar outra vez marido, pai e rei, agindo como só ele poderia agir, ocupando o vazio que deixaria ao partir.

Ulisses recusou a oferta de Calipso de se tornar um deus e escapar da morte, pois escolher viver ali significaria desistir da vida Naquela ilha paradisíaca, onde tudo seria previsível e seguro, disponível e gratuito, uma coisa estaria faltando: um futuro no qual ele pudesse se atirar de corpo e alma.

Os gregos acreditavam que, durante a vida, o objetivo dos homens é terminar uma tarefa incompleta, e que é essa missão, mesmo que vagamente percebida — que atribui significado à nossa existência, qualquer que seja o perigo.

Calipso ofereceu a Ulisses tudo o que ele era, mas lhe negou tudo o que ele poderia vir a ser. Naquela ilha exuberante porém deserta, um deus poderia viver, mas não um homem. Não por acaso a deusa se chamava Calipso, nome que significa “aquela que esconde”, pois, se seu amado decidisse ficar e viver com ela para sempre, teria ficado escondido — dos outros mas também de si mesmo, daquele que poderia vir a ser.

No fim, não foi em busca de seu lar que ele partiu, carregado pelas ondas numa jangada, mas daquilo que poderia se tornar. Observando-o se afastar pouco a pouco, remando lentamente, até Calipso entendeu a escolha que Ulisses fez.

Assim como Ulisses, porém, precisamos tomar uma decisão. Temos de pensar se evitar a dor e buscar o prazer é tudo o que a vida tem para nos oferecer. Cabe a nós decidir se temos uma obrigação somente conosco ou se existem terras mais distantes às quais devemos chegar e onde precisam de nós. Este mundo talvez não precise de mais deuses, e sim de mais humanos. Por que, então, esconder as pessoas que poderíamos nos tornar?

Ao aceitar esse desafio, enfrentamos obstáculos que os gregos não conheceram. Não se trata de nenhum turbilhão ou monstro de três cabeças, mas de novas forças que conspiram para roubar nossa humanidade pedindo que sejamos menos do que somos. Entre algumas dessas forças estão, por exemplo, tecnologias que cada vez mais substituem o calor do contato humano pela fria eficiência das máquinas, mercados que nos convencem de que nosso valor é medido pelas coisas que possuímos e governos que, por serem muito grandes, nos convencem de que somos pequenos demais para realizar mudanças.

No entanto, todas essas coisas — tecnologia, mercado e governo — são criações humanas. Tudo o que é concebido pelo homem, nos lembram os gregos, pode ser modificado pelo homem, desde que haja empenho pessoal e vontade coletiva suficientes. Nossa tarefa então é nada menos que reaver a nossa humanidade, tanto como indivíduos quanto como sociedade. E se quisermos modificar a sociedade, temos de começar por nós.

Pilares da Grécia, a Humanidade: Stephen Bertman, PH.D

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